Shrill: a série que você, pessoa gorda, não sabia que precisava

Colagem digital minha

Como você se sente quando enxerga algo tão seu num personagem? Depois de assistir três temporadas de Shrill, senti que não estava sozinha

Importante: o texto contém spoilers e análises das três temporadas

Annie Easton (Aidy Bryant) é editora assistente de calendário do The Thorn, um jornal criativo e inovador de Portland. Ela quer crescer profissionalmente, escrever pautas que acredita e sair da editoria que não a desafia mais. Annie faz o que toda jornalista faria: relembra os ‘nãos’ recebidos, passa por uma experiência inédita e pede mais uma chance para escrever sobre o que acredita ao editor chefe Gabe Parrish (John Cameron Mitchell). O tão esperado sim chega e ela vai escrever um artigo que pode impactar muitas outras leitoras.  

Ryan (Luka Jones) é o cara com quem Annie fica e ele a-m-a fazer sexo sem camisinha. Ela não se sente bem em tirar isso dele, então embarca nessa e usa as pílulas do dia seguinte como método contraceptivo, afinal, ela não pretende ser mãe naquele momento. Tudo muda quando o resultado do teste de gravidez é positivo e ela pede para trocar o produto na farmácia, afinal, podia estar com defeito. 

A farmacêutica explica para ela que a pílula só é administrada em mulheres com 80 quilos ou menos e em casos de emergência. Annie, que pesa mais de 80 quilos, se pergunta porque o outro farmacêutico que sempre a atendia nunca a alertou sobre isso. E é sobre essa experiência inédita e gordofóbica que Annie escreve, o artigo conquista milhares de visualizações no site do jornal. 

Lá em cima, disse que a série me fez sentir que não estava sozinha, e isso não se deu por causa de um resultado positivo no teste de gravidez. Não deveria ser, mas ainda é radical a ideia de que pessoas gordas são pessoas completas. Shrill mostra isso, ao nos apresentar uma personagem complexa, impaciente, egoísta, cheia de erros –  e que já é inteira. A personagem não passa por uma grande jornada que dizia “era o sobrepeso o que a impedia de ser feliz”. Não. Annie quer sim mudar a própria vida e a carreira, mas não seu corpo. 

A acompanhamos em suas descobertas, erros e aprendizados – que podem ou não envolver o corpo, assistimos o rompimento de um ciclo que foi parar de aceitar migalha de atenção e nos inspiramos com a vontade dela de viver, inclusive nesse mundo que não acolhe com dignidade pessoas gordas. 

O desafio de Annie em lidar com a gordofobia da sociedade e com a sua própria autoestima machucada é real. E é um alívio acompanhar uma personagem que não precisa passar por uma jornada de negação da própria vida, para depois ter permissão de existir, especialmente por que a série conseguiu construir essa dinâmica de forma clara e respeitosa. Mérito criativo da equipe, que identificou que são poucos os roteiros preocupados em dar mais do que o emagrecimento como característica a uma personagem gorda. 

Isso é feito não só com Annie, mas também com Fran (Lolly Adefope), melhor amiga da protagonista que também é gorda e investe bastante tempo mostrando para a amiga que sim, ela deveria tirar a coisa favorita do cara que só quer transar sem camisinha e pedir para que ela saísse da casa dele pela porta dos fundos.

Além de inteligente e fiel escudeira, Fran é uma mulher lésbica de ascendência nigeriana que cresceu em Londres e traz para o seriado a tranquilidade de quem sabe que não precisa se desculpar por existir. E, de quebra, debate várias pautas sociais de maneira esclarecida. Isso é feito de forma pontual, afinal, o enredo da Fran é buscar o reconhecimento dos pais em relação a profissão dela – eles aceitarem que ela é cabelereira e não advogada, aprender a estar solteira e se permitir amar e se relacionar para além do sexo.

Fran e Annie moram juntas desde a faculdade, onde se conheceram, e a série aposta em uma narrativa que coloca a amizade como o relacionamento mais importante das personagens. Com erros, vacilos e acertos, Annie e Fran se acolhem e cuidam de forma muito íntima e poderosa, mostrando que o amor não segue apenas a lógica batida do relacionamento romântico e que a amizade entre mulheres pode ser fonte de segurança e afeto.

A trilha sonora de Portland 

Shrill é o tipo de série que traz a própria cidade como personagem. Não tão forte como em Broad City ou Friends, reconhecidas por isso, mas Portland está lá com toda a sua estranheza, beleza e criatividade que já impulsionou artistas de diversos tipos. A trilha sonora é música para os ouvidos dos fãs de música alternativa e para quem gosta de bandas do Noroeste Pacífico. Talvez seja até redundante citar isso, por conta da cidade na qual se passa a série, mas felizmente a trilha conversa perfeitamente com a personagem, a cidade e com os problemas vividos no The Thorn. 

Courtney Barnett, Sleater Kinney e Cat Power tocam ao fundo, enquanto o próprio Gabe se gaba por ter inventado o feminismo nos anos 90, diz ter sido o baixista original de Bikini Kill, usa camisa do Dead Kennedys e conta anedotas com Henry Rollins. O próprio The Thorn foi criado por Gabe e Bongo (Fred Armisen), que é dono de uma loja de discos e tem na parede as capas mais antigas do jornal. É referência sobre punk rock e bandas alternativas que não terminam. É claro que o Pop também se faz presente, Kali Uchis, Ariana Grande e Lil Wayne dão o tom do humor de Annie em alguns momentos. 

Uma série que entrega tantas soluções fora do óbvio, faz isso com pessoas que têm a autenticidade como assinatura de trabalho. As criadoras são Aidy Bryant (atriz, roteirista e produtora, conhecida por Saturday Night Live), Alexandra Rushfield (produtora e roteirista, conhecida por Parks & Recreation e Love) e Lindy West (produtora e roteirista, conhecida por Thin Skin) e dirigem os episódios, artistas como, Carrie Brownstein (Portlandia) e Natasha Lyonne (Orange is the new black).

Lançada em 2019 e exibida originalmente no Hulu, a série de comédia tem oito episódios por temporada e também está disponível na HBO. Infelizmente, a série não foi renovada para a quarta temporada, mas termina sem comprometer tudo o que construiu. Ela termina nos lembrando que tá tudo bem vivermos os nossos processos sem, necessariamente, uma grande e óbvia solução.

*Todas as imagens da série retiradas do site IMDB

*Orfãs de Broad City também devem gostar dessa série

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Author: Carla Duarte

Jornalista que trabalha com marketing digital e que cresceu lendo. Aqui, compartilho as leituras que me fizeram. Antes disso, escrevia sobre faça você mesma e contracultura no blog Cabeça Tédio.

2 thoughts on “Shrill: a série que você, pessoa gorda, não sabia que precisava”

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